Miss in Scene | A Favorita

Mulheres à beira de um ataque de nervos. Nem os delírios mais “almodovarianos” conseguiriam desvendar psiques tão mordazes como as retratadas no novo filme de Yorgos Lanthimos. O longa é uma aquarela da excentricidade da nobreza e suas quedas de braço por poder, mostrando uma época importantíssima para a história da Grã-Bretanha que conhecemos hoje. Dividido em oito capítulos de títulos tão afiados quanto a língua das personagens, A Favorita é como um jogo de tabuleiro onde os dados são a política e a luxúria. Com algumas licenças poéticas e um elenco majestoso — e isso não é um trocadilho, é apenas um fato —, a trama nos imerge na complexa relação de três mulheres intensas.

A primeira delas é a aparentemente frágil rainha Anne, vivida por Olivia Colman, em uma interpretação sensacional. É incrível como Colman sustenta o olhar triste da monarca mesmo em seus momentos de desatino, o que é coerente com sua história de vida. Emocionalmente instável e com a saúde em constante deterioração, ela é mãe (provavelmente seria a palavra que a personagem usaria) de 17 coelhos — uma ironia, pois se trata de um símbolo de fertilidade representando exatamente os 17 filhos que ela perdeu. Historicamente falando, os bichos nunca existiram. A presença deles no filme é apenas uma ferramenta dramática, com diferentes significados nas diversas situações: o coelho também simboliza inocência, ou ainda astúcia e inteligência. Essa variação de contextos em que o animal é colocado ajuda a guiar o espectador no eterno vai e vem emocional da rainha, principalmente em relação às suas pretendentes à favorita.

Favorita

A amizade de Anne com Sarah Churchill, a Duquesa de Marlborough, beira a dependência emocional. A personagem de Rachel Weisz é talvez a menos discreta em seus modos manipulativos, seu ar de altivez acentuado principalmente quando se dirige aos membros da oposição. Sarah é daquelas que pisam sem bondade, e não tem limites quando se trata de conseguir o que acredita ser mais vantajoso para a Inglaterra… e para ela. Esses parecem ser os únicos pesos em sua balança moral. Em alguns momentos, parece ter algum carinho genuíno por Anne, mas a usa como a peça-chave de seu jogo e não tem muita paciência com os devaneios da monarca.

É na falta de sensibilidade de Sarah que sua prima recém-chegada, Abigail (Emma Stone), encontra espaço para se aproximar da rainha. A atitude firme e a inteligência aguçada, em contraste ao seu ar angelical, revelam uma jovem que foi obrigada a amadurecer rápido demais para sobreviver. Seu magnetismo é tão forte que também atrai a atenção de Masham (Joe Alwyn), mas é sua aparente inocência que faz Harley (Nicholas Hoult, excelente), o líder da oposição, pensar que pode usar a jovem para se aproximar da rainha. A verdade é que Abigail é uma víbora muito mais esperta que ele. Observadora, aprende também com sua própria rival, Sarah, a jogar o jogo sujo.

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Não há nenhuma prova histórica de que a rainha Anne tenha sido lésbica. Portanto, esse traço do filme deve ser encarado como uma licença poética; o sexo aqui é uma forma de mostrar como as personagens são predadoras, instintivas, utilizando suas presas ao seu bel-prazer e em seu favor. No entanto, a manipulação entre elas é, sim, historicamente precisa, como você pode ler neste artigo.

Mas nem só de roteiro e interpretações fortes se sustenta A Favorita. Os luxuosos figurinos de Sandy Powell, como sempre, são de cair o queixo. Outros grandes acertos vêm no design de produção e na fotografia: a matiz dourada e terrosa confere o tom frio e quase lúgubre que pairava sobre a Inglaterra no início do século XVIII. A trilha, marcada sobretudo por um piano de uma única nota insistente, deixa claro como era agonizante o período para o reino. Ao contrário de outros filmes de época que mostram grandes bailes cheios de alegria e frivolidades, até mesmo as cenas festivas neste longa demonstram a excentricidade da corte inglesa.

Tais excentricidades se traduzem nas coreografias das danças e nos jogos bizarros — que tal uma corrida de patos? E jogar romãs em um membro do parlamento nu? (e sim, os créditos no IMDB incluem “Pato Mais Rápido da Cidade” e “Tory Nu dos Romãs”) —, mas seus momentos mais deliciosos acontecem com Rachel Weisz e Emma Stone em tela, durante suas disputas de tiro. A cada vez que a dupla se junta para a diversão, a tensão entre elas é mais visível, se tornando quase um terceiro personagem em cena. É notável o quanto elas prefeririam estar atirando uma na outra (e o fazem, com palavras), do que nas aves.

Subversivo em sua própria medida, A Favorita não foi escrito por Lanthimos, mas tem a marca do diretor em cada frame, algo que se torna ainda mais forte na cena final. Um filme que não se acanha, remontando a história sem maniqueísmos baratos. Três mulheres perspicazes e sem limites em um jogo de intrigas, confiança, interesses e luxúria, onde o grande vencedor somos nós, espectadores: ganhamos mais uma excelente obra do diretor grego.

Nota: ★★★★★

Ficha Técnica

Título original: The Favourite

Ano: 2018

Direção: Yorgos Lanthimos

Roteiro: Deborah Davis e Tony McNamara

Elenco: Olivia Colman, Emma Stone, Rachel Weisz, Nicholas Hoult, Joe Alwyn, Mark Gatiss

Fotografia: Robbie Ryan

Montagem: Yorgos Mavropsaridis

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Roseana Marinho

Roseana é publicitária e acha que os dias deveriam ter pelo menos 30h para trabalhar e ainda poder ver todos os filmes e séries que deseja. Não consegue parar de comprar livros ou largar o chocolate. Tem um lado meio nerd e outro meio bailarina.

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