Horrorscópio | Nós

 

Em Corra!, Jordan Peele foca em criar todo um clima de horror pelo ponto de vista de um negro no meio de uma sociedade branca. O que torna isso ainda mais cruel é o fato de manter sempre uma dualidade sobre o caráter dos personagens, criando situações desconfortáveis e trabalhando com uma tensão criada através da curiosidade que o protagonista alimenta a cada minuto de convívio com aquelas pessoas.

Em Nós, Peele vai além apenas de uma crítica sobre o racismo; o foco do diretor é mostrar, de um modo geral, a podridão dentro da sociedade americana, criando um ambiente hostil, para que todos se coloquem no mesmo lugar da minoria que sofre no seu dia-a-dia com essas situações consideradas absurdas quando observadas de um certo ponto de vista e, ao mesmo tempo, sendo algo comum quando se veem por outros olhos.

Para que todo o clima de insegurança e medo seja efetivo, vários pontos têm que funcionar com uma certa sincronia. O primeiro é a relação familiar, como é a personalidade de cada personagem, a forma como eles interagem entre si. Criando laços entre o público e a família, nos fazendo entender como cada um tem uma característica que fará diferença dentro daquela história.

O bacana é ver que Peele se utiliza de clichês para enriquecer sua obra, mas o modo como ele os desenvolve é que é a melhor sacada. Temos aqui a mãe de família e o pai, um é o que procura resolver os problemas, se põe na frente para defender a família; o outro é aquele mais frágil, que fica sempre atrás do protetor e age de certa forma mais por medo do que coragem. Esse papel de coragem, que normalmente é entregue aos homens, aqui o diretor subverte e coloca Adelaide (Lupita Nyongo’o), a mãe da família, como a protetora, a que suja as mãos de verdade, deixando o papel de protegido e de certo modo “covarde” para o seu marido, Gabe (Winston Duke).

Isso já puxa um outro grande acerto da obra, que coloca pontualmente certas tiradas humorísticas. Principalmente envolvendo Gabe, que é enorme, se envolvendo em situações mais acovardadas. Essa pegada de humor casa bem, já que não quebra a tensão de cenas mais fortes e não é utilizada de forma gratuita, é um modo de fazer com que o público relaxe e note as críticas que o diretor faz.

 

A fotografia também ajuda nesse desenvolvimento, não subestimando seu público, como na cena da praia, que mostra toda a família de cima e suas sombras bem alinhadas, remetendo diretamente aos seus futuros perseguidores. É bonito ver um trabalho não tão expositivo, apostando na percepção de seu público e desafiando-o a conferir a obra mais de uma vez se for possível, já que é um filme que nos traz muitos questionamentos e desperta nossa curiosidade através dos detalhes.

Percebemos que Peele é realmente um fã de cinema já na abertura do filme, com uma música de certa forma perturbadora, com um canto que remete mais a uma fantasia do que um horror. Isso, ironicamente, acaba tornando a trilha mais perturbadora. Um contraponto usando músicas pop e rap, mais atuais, torna aquelas pessoas mais críveis, criando quase que uma atmosfera rotineira.

Com isso tudo muito bem construído, a história não perde tempo e vai logo ao ponto em que a narrativa se desenrola para seu principal plot. O fato de o roteiro seguir direto ao ponto atrai mais o público para uma imersão, já que temos uma mudança brusca na história e a situação criada é bastante curiosa. É nesse momento, em que a casa dessa família é invadida, que o diretor dá a sua primeira porrada. Ao questionar quem são os invasores, temos a frase mais marcante da obra “Nós somos americanos” — deixando claro qual o caminho que seguiríamos a partir dali.

É o momento onde vemos que começamos a perceber todas as dicas que o diretor foi deixando ao longo da obra, fechando de forma brilhante seus pontos — como a crítica aos republicanos ao mostrar os invasores utilizando a cor vermelha, essa que é bastante utilizada em toda a obra para expor o medo e perigo.

Um dos grandes destaques aqui é Lupita Nyongo’o mostrando toda sua genialidade ao atuar. A voz que ela cria para Red é assustadoramente insana, quase como se fosse uma pessoa engasgada, que prende toda a dor de uma vida roubada. E isso é um trabalho excelente de uma boa parceria de diretor e ator, já que ao mesmo tempo em que a personagem dela parece que teve a voz roubada, Peele coloca a ideia de que aquelas pessoas sempre serão caladas, para que o povo americano consiga viver sem ser importunado por pessoas que querem os mesmos direitos.

Nós é uma bela evolução de Jordan Peele como cineasta, que mostra não subestimar seu público e deixa claro para quem quiser ver e ouvir suas criticas diretas sobre uma nação que não se respeita e busca a todo modo aniquilar uns aos outros, não percebendo que isso, na verdade, acaba matando-os aos poucos. Expõe um povo que prega superioridade, mas que falhou como sociedade. Um filme que mostra o quanto os Estados Unidos são mais parecidos com uma obra de horror do que imaginávamos.

Nota: ★★★★★

 

 

Ficha Técnica

Direção: Jordan Peele

Roteiro: Jordan Peele

Elenco: Lupita Nyong’o, Winston Duke, Elisabeth Moss, Tim Heidecker, Shahadi Wright Joseph, Evan Alex, Yahya Abdul-Mateen II, Anna Diop, Cali Sheldon, Noelle Sheldon, Madison Curry

Fotografia: Mike Gioulakis

Trilha Sonora: Michael Abels

Montagem: Nicholas Monsour

Direção de Arte: Cara Brower

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Ítalo Passos

Cearense, estudante de marketing digital e crítico de cinema. Apaixonado por cinema oriental, Tolkien e ficção científica. Um samurai de Akira Kurosawa que venera o Kubrick. E eu não estou aqui pra contrariar o The Rock.

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