Na Netflix | Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story by Martin Scorsese
O ano é 1975. Um ano antes, Richard Nixon renuncia ao cargo por causa do iminente processo de impeachment devido ao escândalo de Watergate, o atual presidente sofre duas tentativas de assassinato, a crise do petróleo torna a economia instável e o clima intenso de protestos por décadas é cessado por conta do fim da Guerra do Vietnã.
A turnê batizada de Rolling Thunder Revue é um momento marcante na carreira do gênio Bob Dylan, já que o mesmo, após tanto tempo sem fazer um show, reúne músicos talentosos como Joan Baez, Joni Mitchell e Roger McGuinn para desbravar o país em pequenas cidades, indo na contramão da época, onde apresentações para grandes públicos eram cada vez mais comuns.
Martin Scorsese já tinha explorado a figura do compositor em outro documentário chamado No Direction Home: Bob Dylan, investigando suas influências musicais e literárias, a importância de suas canções (intituladas de “canções de protestos” que retratam os aflitos de toda uma geração) dentro do contexto sociopolítico norte-americano, além da paranoia onipresente adquirida pela Guerra Fria.
Logo, é interessante que, tanto na obra de 2005 como nessa produção da Netflix, reconhece-se a complexidade de Dylan e sua constante transformação artística ao nunca tentar decifrá-lo ou construir sua narrativa de forma óbvia e burocrática — e em ambos não existe a intenção de analisar sua infância ou privacidade; é a imagem e percepção exclusiva da vida musical que está no divã.
Portanto, não é à toa que a essência do filme encontra a perfeita metáfora ao evidenciar seu protagonista usando máscaras e maquiagens para reprimir sua persona e, como consequência, extrair a mais pura representação diante de plateias comunicativas e apaixonadas.
Joan Baez e Bob Dylan
Como se não bastasse, não deixa de ser elegante, independentemente se foi ou não mera coincidência, o paralelo entre os dois quando o primeiro se encerra ao explicar que o cantor e compositor, após o icônico show em Londres em 1966 (em que foi vaiado e xingado por supostamente trair o gênero folk), só voltaria a se apresentar ao vivo no palco depois de quase 10 anos, que é o assunto principal desse novo trabalho de 2019.
E todo esse conceito já é demonstrado no primeiro frame: ao colocar um mágico realizando um truque de desaparecimento, já se estabelece que aquele tour é algo místico, alegórico e absolutamente único como o criador por trás de tudo aquilo — ganhando mais uma camada de mistério ao pôr o próprio artista para responder “é sobre nada!” quando é perguntado sobre o propósito daquela turnê, que é uma mescla insana de circo ambulante, caravana e show.
O diretor tem plena consciência da raridade dos registros que possui em mãos; por isso, foge de uma estrutura clássica ao sempre pontuar os relatos de certos acontecimentos com músicas em versões sem cortes (Isis, One More Cup of Coffee, A Hard Rain’s A-Gonna Fall, Simple Twist of Fate e algumas outras) com a clara finalidade de demonstrar o ápice performático não só de um magnético Dylan, mas da banda inteira por meio de imagens restauradas de maneira impecável.
Além disso, existe espaço também para abordar outros temas, como a eterna discussão entre poesia e música, a percepção do sucesso (se a turnê em questões financeiras foi um fracasso, não há motivos para contestar o mérito artístico), o legado cultural dos indígenas para o país e o preconceito institucional com os negros através dos poderosos versos de Hurricane que seria a faixa mais famosa de seu próximo disco.
Com aparições da atriz Sharon Stone e dos falecidos Rubin Carter e Sam Shepard, o documentário não tem qualquer receio de revelar depoimentos soberbos (o responsável por essas imagens afirma que, de certa forma, ele é o diretor dessa produção porque, sem aquelas imagens, não seria possível este) e divergentes. Em determinado momento, por exemplo, todos falam que Allen Ginsberg (filósofo, poeta e um dos fundadores do influente movimento Beatnik) era uma figura paterna, porém, Dylan nega com veemência tal alegação.
Bob Dylan e Allen Ginsberg visitando o túmulo de Jack Kerouac
Com isso, se coloca em questão a própria veracidade do que se presume como fatos (se afastando mais ainda da corriqueira concepção do formato fílmico que está inserido) e convida o espectador a uma reflexão sobre a perspectiva subjetiva de cada um daqueles indivíduos naquela jornada. Uma jornada que, mesmo com sua boa parcela de incógnitas, possui várias facetas: desde o viés poético e existencialista exposto pelo diálogo “Fomos descobrir a América e acabamos descobrindo nós mesmos” de Ginsberg, até o desapego de Dylan ao afirmar que o que sobrou daquela experiência foram apenas cinzas.
Ao se encerrar com aquele mesmo mágico do início colocando uma máscara, o diretor nova-iorquino “amarra” a essência enigmática da narrativa que permeia cada segundo da duração para ressaltar a profundidade de um homem que é objeto de estudo e fascinação de uma multidão. E, apesar de tudo, ainda não é possível compreender por completo esse artista que recusa rótulos, converte palavras em poesias e sempre se reinventa dentro da sociedade, solidificando o viés mítico que o ronda desde sua fama no começo da década de 1960.
Nota: ★★★★★
Ficha técnica
Nome Original: Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story by Martin Scorsese
Ano: 2019
Direção: Martin Scorsese
Elenco: Bob Dylan, Allen Ginsberg, Joan Baez, Ronnie Hawkins, Roger McGuinn, Patti Smith, Larry ‘Ratson’ Elliott, Sharon Stone, Sam Shepard, James Gianopulos, Scarlet Rivera, Ramblin’ Jack Elliot
Montagem: Damian Rodriguez e David Tedeschi
Fotografia: Howard Alk, Ellen Kuras, David Myres e Paul Goldsmith