Descubra um Clássico | Céu e Inferno (1963)

 

Akira Kurosawa sempre foi um cineasta muito conhecido pelos seus filmes de samurais; claro que suas obras são muito mais complexas e abordam inúmeros assuntos dentro de vários contextos: mesmo tendo um foco maior nos clássicos guerreiros nipônicos, Kurosawa também criou obras contemporâneas que, mesmo sendo feitas nos anos 1960, até hoje permanecem atuais.

Um exemplo perfeito é Céu e Inferno, que nos traz para uma realidade não tão diferente da nossa atual no Brasil, mas que se passa no Japão, há mais de cinquenta anos. É interessante notar que o diretor faz questão de nos mostrar a capital japonesa daquela época, se reerguendo, ainda sem grandes outdoors luminosos, sem prédios gigantescos. Era um processo ainda muito devagar, comparado aos dias atuais. A transição do Japão mais tradicional para o país moderno começava a nascer.

Esses planos mostrando a situação da cidade são extremamente importantes para diversos assuntos abordados pela obra. Desde a ganância corporativista em que o protagonista está envolto, até a desigualdade social que é exposta.

O filme é dividido basicamente em duas partes: durante a primeira hora, acompanhamos o sequestro do filho do chofer, como um drama mais psicológico, mantendo a tensão em uma só locação, utilizando de um enquadramento mais aberto, onde todos os personagens estão na maioria das vezes em cena ao mesmo tempo. Assim, temos uma captação mais forte do temor de certos personagens, fora que mesmo com planos tão abertos, nos sentimos de certa forma claustrofóbicos, assim como Kingo Gondo (Toshirô Mifune), que em diversos momentos abre sua cortina e janelas, para pegar um ar, mesmo com os conselhos dos policiais para não fazê-lo.

Durante essa primeira metade, Kurosawa não poupa críticas ao corporativismo e a ganância dos mais ricos em ter cada vez mais poder. Aborda a moralidade de seu protagonista ao fazê-lo escolher entre se tornar o todo poderoso de sua empresa, sem ter ninguém para contestar suas decisões, ou em pagar o resgate do garoto e perder praticamente tudo. É onde o diretor nos faz ter certa raiva do protagonista, que se mostra em vários momentos pouco preocupado se uma vida humana está em jogo.

Já a segunda metade nos traz um clássico jogo de gato e rato construído de forma magistral. O diretor faz questão de fazer com que o público acompanhe cada raciocínio que os policiais seguem para capturar o sequestrador, cada detalhe que muitos deixariam de lado, Kurosawa aplica em diálogos longos, mas em ritmo de urgência, assim, mantendo o interesse do público sempre alto, já que toda a jogada durante a segunda parte se mostra importantíssima até os mínimos detalhes.

É também onde o diretor vai mais a fundo em suas críticas sociais, mostrando o lado mais obscuro daquela sociedade, onde somos colocados em meio a diversos viciados jogados em um beco, onde adentramos em meio a barracos em que várias famílias sobrevivem. Ao trabalhador que leva a vida queimando lixo. Tudo isso vai fazendo total sentido perante as motivações do sequestrador, envolto de inveja por sempre ver o palácio de Gondo, reluzente, enquanto ele vivia em um barraco no qual ou passava muito frio, ou calor.

Os extremos que ao se chocar causam um desastre, os extremos que deveríamos sempre lutar para que não ocorressem, os extremos que se afastam, cada vez mais, em meio à falta de oportunidades e educação. Onde até mesmo aquele mais rico, no dia que recebe um choque de realidade, muitas vezes não consegue lidar.

Kurosawa deixa claro aqui que todos os esforços estão de prontidão para deixar os ricos cada vez mais ricos, ignorando totalmente que existem pessoas que estão sendo pisadas. Entendemos através de uma fumaça rosa (única cor que temos durante toda a fotografia em preto e branco) que sempre haverá esperanças para aqueles que estão no alto, e apenas os que estão embaixo irão sofrer as verdadeiras consequências.

É interessante também notar que no último ato o sequestrador utiliza um óculo espelhado enquanto está sendo perseguido. Isso quase mistifica o personagem visualmente, já que não vemos os seus olhos, apenas o reflexo de seus óculos. Dando uma força a mais para ele, tornando quase imponente.

Mesmo após ser capturado, no dia de sua execução, quando Gondo fica cara a cara com ele, temos provavelmente o diálogo mais forte da obra, quando o mesmo fala sobre a sua dor e a ausência de medo de morrer, recusando a ver um padre, pois o mesmo diz não ter medo de ir ao inferno, já que viveu a vida inteira em um.

Nota: ★★★★★

 

 

 

Ficha Técnica

Título Original: Tengoku to jigoku

Direção: Akira Kurosawa

Roteiro: Hideo Oguni, Ryûzô Kikushima, Eijirô Hisaita, Akira Kurosawa

Elenco: Toshirô Mifune, Tatsuya Nakadai, Kyôko Kagawa, Tatsuya Mihashi, Isao Kimura, Kenjirô Ishiyama, Takeshi Katô, Takashi Shimura

Fotografia: Asakazu Nakai, Takao Saitô

Trilha Sonora: Masaru Satô

Figurino: Miyuki Suzuki

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Ítalo Passos

Cearense, estudante de marketing digital e crítico de cinema. Apaixonado por cinema oriental, Tolkien e ficção científica. Um samurai de Akira Kurosawa que venera o Kubrick. E eu não estou aqui pra contrariar o The Rock.

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