Cine Ceará | Canção Sem Nome

Dia 02

Por Tiago Araújo

O texto a seguir possui spoilers. Leia por sua própria conta e risco.

A cena definitiva de Canção Sem Nome é também a mais dolorida. A protagonista, Geo (Pamela Mendoza), é expulsa de uma clínica vagarosamente, enquanto grita pedindo para ver a filha. No quadro, vemos uma porta no centro, arestas com luzes do lado de fora e as sombras das enfermeiras levando a desesperada mulher e a empurrando para fora. Os próximos segundos se seguem com os gritos aterrorizantes de Geo, implorando pela criança. Do lado de dentro, as sombras logo se distanciam. Ela está falando com ninguém, com sua figura coberta por uma enorme sombra, a da porta, e um objeto que a impede, física e metaforicamente, de consumar o seu amor pela menina. O preto e branco da fotografia aqui se torna claustrofóbico, assim como a proporção do quadro em um aspecto menor do que o habitual da tela de cinema, quase quadrado, empurra as ações para um espaço limitado, aumentando o terror da cena.

Não só a protagonista grita aqui, mas o filme também, forte e áspero. Canção Sem Nome é sobre essa mulher que tem a filha roubada por uma “empresa clandestina” para ser traficada fora do país, mas é principalmente sobre a sua impotência em conseguir a tão buscada justiça. O filme se mostra não somente desalentador em suas ações, como também em suas imagens, frias, obscuras, provocantes. Lembro pelo menos de uma que me assombra desde a exibição, em que Geo volta com o marido pelas dunas. Vemos somente suas sombras, cobertas por uma fina luz branca. A caminhada é desacelerada com um slow motion, estranha, transformando aquelas figuras humanas em fantasmas na grande paisagem ao seu redor. A câmera, a princípio impessoal, distante, logo ganha um aspecto diferente quando os personagens chegam mais próximos, quando conseguimos enxergá-los como os humanos que de fato são, mas quebrados, consumidos pelo ambiente.

Em um grande plano aberto vemos o Palácio da Justiça, imponente, com Geo, pequenina, entrando para buscar ajuda. Nessa cena, a proporção dos dois objetos, do enorme Estado para a pequena cidadã, é clara e diz uma coisa essencial: eu sou muito maior do que você. Quando a protagonista entra, vemos um local gigante e vazio, com militares guardando-o, um aparelhamento feito não para ouvir os gritos, mas para manter os silêncios. Desesperada, ela recorre ao jornalista Pedro (Tommy Párraga) e é por meio dele que as sensações das imagens antes descritas ganham palavra e diálogo.

Pedro sempre recebe negativas indo atrás de pistas e suspeitos, mas aos trancos e barrancos vai conseguindo avançar nas investigações, até chegar em locais onde efetivamente é dito a ele para parar de procurar, porque consequências podem surgir. Curiosamente isso é dito tanto por pessoas comuns, quanto por autoridades, como um juiz e um senador, além da ameaça invisível da organização que permeia todo o filme. Pedro, obstinado, não desiste e segue a luta, até o momento que tem de se afastar de ser quem ele é.

Durante todo esse período de tristeza de nossa protagonista Geo, Pedro conhece um ator de teatro, interpretado por Maycol Hernandez. Na primeira cena em que o avista, Pedro se encontra na parte de cima de um prédio, enquanto o ator sobe as escadas deste. Com olhar de curiosidade, Pedro observa, mantendo uma distância física e emocional, inicialmente, pois não é possível saber de imediato seus sentimentos. A diretora Melina León os aproxima em duas cenas. Na primeira, ambos bebem em um bar e ela faz um plano dos rostos dos dois, demonstrando uma intimidade antes inexistente. Na segunda, Pedro vai à casa do ator e mantém uma certa distância dele no quadro. Conversa vai, conversa vem e ambos se aproximam com uma dança, até que a distância é efetivamente quebrada e os dois se beijam. Ali Pedro se encontra disponível e livre, diferente de suas feições geralmente duras com o mundo. Consegui antecipar que isso seria usado contra ele, o que de fato acontece. O jornalista é impedido de ser quem ele é por ser impedido de se abrir, de viver algo diferente da realidade sombria relatada naquele universo. As últimas palavras do ator, tristes, porém conformadas, são: “Pensei que você fosse diferente“. Ali já não havia mais nada a fazer, a não ser continuar mantendo a distância para o mundo.

Se o filme consegue capturar tão perfeitamente as dores, lhe falta algo a mais para alcançar uma completude no estudo de seus personagens. Geo parece ser puro sofrimento, nada além. As cenas pesadas dela caminhando grávida e sozinha por uma longa escadaria, o plano em seu rosto no parto, com o bebê desfocado ao fundo, tudo parece perfeitamente orquestrado pelo sentimento da dor, mas o que a personagem tem além disso para carregar? Tenho a sensação de que não a conheço bem, de que o filme não me entrega mais sobre ela além dos terríveis acontecimentos que presenciamos. Isso lembra um pouco Roma, de Afonso Cuarón. A diferença é que o diretor mexicano tem mais êxito em fazer uma leitura universal do panorama político-social de seu país e entender as difíceis dinâmicas entre os gêneros, enquanto Melina León dilui as tensões políticas e as coloca muito mais em segundo plano, privilegiando a torpeza da dor, ao invés de integrá-la a uma personagem mais complexa, com mais passado e talvez até mais dores.

O mesmo pode ser dito do jornalista Pedro. Sua jornada já parece um pouco mais bem trabalhada, mas ainda assim é difícil ter empatia o suficiente por sua dor particular, revelada em momento tão tardio e de maneira tão breve. O que me parece é que falta um equilíbrio no roteiro de Melina Léon e Michael J.White, no que diz respeito ao eixo dramático e temático da produção. Se por um lado temos cenas fortes e dolorosas o tempo todo, regidas pela ação, do outro parece que falta mais para trazer um estofo tão necessário ao tema da perda e da luta impotente. A destreza técnica do filme é impecável, com a já citada fotografia em preto e branco perfeita para o contexto, além de possuir métricas e iluminações que dão peso às ações. Esse desequilíbrio entre uma estética acima da média e um roteiro que fica no meio termo entre subjetividade e objetividade é o que distancia o filme de uma maior grandeza, certamente buscada por sua diretora.

Canção Sem Nome é um filme belo e virtuoso tecnicamente, mas que conta com um desequilíbrio nas suas escolhas narrativas. Apesar disso, as imagens conseguidas pela diretora Melina León são tão fortes que permanecem conosco, assim como a luta de pessoas injustiçadas não somente no Peru, mas em qualquer lugar do mundo. A canção sem nome do título, entoada no último plano do filme pela protagonista Geo, ecoa forte nos segundos finais, enquanto a câmera revela as mais obscuras faces de uma mãe.

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Ítalo Passos

Cearense, estudante de marketing digital e crítico de cinema. Apaixonado por cinema oriental, Tolkien e ficção científica. Um samurai de Akira Kurosawa que venera o Kubrick. E eu não estou aqui pra contrariar o The Rock.

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