Sci-Fi | Blade Runner: O Caçador de Androides
Após ganhar um prêmio em Cannes em 1977 e realizar o horror espacial Alien, O Oitavo Passageiro (a análise dessa obra-prima você pode conferir aqui), o diretor Ridley Scott atinge seu ápice artístico com a ficção científica existencialista Blade Runner: O Caçador de Androides.
A trama, baseada em um dos livros de Philip K. Dick de 1968, acompanha o policial Rick Deckard (interpretado por Harrison Ford), cuja função designada é matar quatro replicantes que fugiram da colônia de trabalho escravo e agora estão no planeta Terra para encontrar o corporativista Tyrell — sendo que o fato de não capturar, mas sim eliminar é o que torna essa específica unidade policial ser denominada Blade Runner.
A obra oitentista já se inicia com um plano aberto de uma Los Angeles, em novembro de 2019, repleta de luzes, mas também, de certa maneira, caótica por causa dos fogos, trovões e uma penumbra que parece ser constituída devido à poluição causada pela industrialização. Logo após, visualizamos um olho azulado refletindo todos esses componentes — metáfora que seria concluída com maestria no terceiro ato.
E todo seu âmbito visual é nada menos que deslumbrante. Se o design de produção (indicado ao Oscar) e o figurino cyberpunk conseguem transportar o público para um futuro decadente crível com as múltiplas luzes néon da cidade que incentivam o consumo com gigantes outdoors, o filme constrói um paralelo com o falecido gênero noir (famoso pelas femme fatales e por ter protagonistas com índoles bastante questionáveis) ao mergulhar o personagem principal nas sombras numa forma imagética de questionar sua essência e ressaltar sua crise interna, além de filmar as cenas em ambientes noturnos e quase sempre chuvosos para representar os sérios temas que estão sendo discutidos.
O debate frutífero se Deckard é ou não um replicante é algo que faz essa ficção científica ser mais que um mero entretenimento. Ao ter sua natureza questionada, a profundidade dramática em contraste com um mundo frio (devidamente reforçada pelas paletas frias da excelente fotografia de Jordan Cronenweth) e cínico se destaca, onde a grande ironia e inversão de valores encontram-se nos próprios personagens.
Ainda que Scott, em outras versões, insira segmentos mais óbvios que perdem relativamente o valor temático, não deixa de ser sutil e elegante a maneira como tenta implantar a dúvida puramente através da mise-en-scène, como, por exemplo, a luz vermelha na pupila do detetive por frações de segundos dentro do seu apartamento, uma vez que todos os replicantes possuem essa peculiar característica; ou o apartamento repleto de fotografias antigas que também podem ser um indício.
Se os terráqueos não parecem ter qualquer resquício de emoção e serem mais frágeis, o “vilão” Roy (vivido pelo ótimo Rutger Hauer) é mais humano que qualquer outro e Rachael (uma enigmática Sean Young) adquire características humanas só quando se dá conta que é uma replicante.
E falar de Blade Runner: O Caçador de Androides sem mencionar a trilha sonora do grego Vangelis é praticamente um crime. Com claras influências de música clássica, jazz e adição de sintetizadores para gerar uma sensação futurística, tudo se torna melancólico.
Essa tristeza e melancolia palpável se justifica por completo porque o roteiro traz esses questionamentos sobre alma, vida e morte de modo bem fluido ao colocar o anti-herói diante de Tyrell para criar o embate filosófico entre criador e criação, onde não existe a figura mitológica de um todo-poderoso; muito pelo contrário, o que se encontra é um homem solitário, decadente e impotente.
A partir daí, livre dessas correntes metafóricas, o terceiro ato culmina com o brilhante monólogo “Eu vi coisas que vocês não imaginariam. (…) Todos esses momentos se perderão no tempo como lágrimas na chuva. Hora de morrer.”, onde o voo da pomba branca (símbolo máximo da paz) assume essa conotação de libertação, tanto física quanto psicológica. Em outras palavras: a epifania que transforma por completo um indivíduo que era para ser uma mera réplica da espécie, mas que tem mais consciência das coisas (incluindo a condição humana) que os responsáveis por sua origem.
A versão original possui um típico final feliz (que chegou a utilizar filmagens descartadas de O Iluminado) com um voice over aborrecido por parte de Ford que não combina em nada com o que presenciamos em pouco menos de duas horas.
Contudo, após o fracasso nas bilheterias e o culto fervoroso que veio a seguir, o diretor britânico finaliza a obra sem muitas respostas, permanecendo a dúvida sobre a natureza do protagonista — escolha narrativa que faz com que o espectador repense suas crenças e explore assuntos relevantes a respeito da própria existência.
Quantos filmes são capazes de tal feito?
Nota: ★★★★★
Ficha técnica
Nome Original: Blade Runner
Ano: 1982
Direção: Ridley Scott
Roteiro: Hampton Fancher e David Peoples (baseado no livro de Philip K. Dick)
Elenco: Harrison Ford, Sean Young, Rutger Hauer, Edward James Olmos, Daryl Hannah, M. Emmet Walsh, Joe Turkel, William Sanderson
Fotografia: Jordan Cronenweth
Montagem: Marsha Nakashima e Terry Rawlings