Descubra um Clássico | O Batedor de Carteiras (1959)

 

A Europa, berço da sétima arte, foi um continente de grandes e influentes movimentos cinematográficos, tendo como melhores exemplos o expressionismo alemão de Metrópolis e O Gabinete do Dr. Caligari; o neorrealismo italiano inserido do contexto pós-guerra de Ladrões de Bicicletas e Roma, Cidade Aberta; e a nouvelle vague francesa como resposta para contestar o processo convencional de se fazer filmes com a febril montagem que “quebra”, de forma constante e abrupta, o curso natural dos diálogos, rejeitando a clássica ordem do plano e contra plano que gera uma característica mais orgânica e fluida em relação à conversação filmada.

Um desses sagrados diretores europeus é Robert Bresson. Vencedor na categoria de melhor direção no festival de Cannes em duas edições (a segunda vitória veio com O Dinheiro na década de 1980), o artista é conhecido por usar atores desconhecidos dentro da indústria, como também por possuir uma ideia de cinema mais próxima da realidade do que aquele típico método teatral da época.

A trama encontra óbvias semelhanças com a obra-prima literária dostoievskiana Crime e Castigo. Sendo assim, O Batedor de Carteiras evoca o livro russo com a justificativa de que qualquer tipo de delito pode ser feito por homens superiores (uma concepção nietzschiana), mas se diferencia ao retratar o personagem principal sem nenhum vestígio de remorso pelas violações cometidas, além de mentir para pessoas sobre sua condição; pelo contrário, continua os fazendo, atingindo, desse modo, a perda absoluta de valores morais, sociais e éticos que são resumidas no pensamento filosófico do niilismo.

Que nem em Um Condenado à Morte Escapou, os múltiplos fade outs servem para revelar a rotina sem grandes acontecimentos (ficava dias sem sair antes de realizar o próximo furto) e a sensação de vazio existencial do protagonista — tudo devidamente exposto por um semblante que sugere a melancolia latente e um apartamento minúsculo e empoeirado.

O diretor-roteirista francês cria uma narrativa fria por meio da simplicidade, adotando a noção de Roberto Rossellini e Jean-Luc Godard de que é necessário mostrar a história, não contá-la. Logo, não é preciso ter determinado segmento apenas para assegurar o encadeamento do roteiro, mas sim por necessidade artística do plano em si.

Bresson, nesse intuito de imprimir um viés mais natural para a película, registra as sequências que envolvem os furtos com uma crueza impressionante, com cortes secos e precisos (uma montagem tão magistral que até Andrei Tarkosvky se rendeu) que sabem dispor toda a lógica geográfica da situação sem confundir o espectador. Além disso, ainda que seja um ladrão, as decisões tomadas nos fazem sentir uma certa empatia pelo indivíduo porque essas escolhas provocam uma compreensão de que não existe saída por se tratar de um hábito praticamente incontrolável.

pickpocket

O diretor consegue atingir todo o potencial almejado ao quase materializar (através das imagens) conceitos abstratos que, até o início do século XX, somente livros e pinturas eram capazes de elaborar, reforçando ainda mais a ideia de um cinema autoral.

Já as narrações em off são igualmente eficazes porque são a única forma de revelar os pensamentos de um ser solitário e introspectivo, cuja única relação afetuosa é com sua doente mãe — e, ainda assim, essa dinâmica entre e mãe e filho é propositalmente pouco desenvolvida para demonstrar o deslocamento e a ausência de pertencimento do mesmo.

No já mencionado O Dinheiro (último trabalho de sua carreira), o artista francês expõe a lógica de Rousseau sobre a corrupção moral quando se vive em sociedade ao colocar a vítima do início sendo o assassino no terço final.

Portanto, se na obra de 1983 o dinheiro é o instrumento para que ocorra a radical transformação da pessoa diante do seu meio, aqui é nada menos que natural que as infrações que envolvem cifras monetárias sejam uma mera tentativa não de sobreviver dentro da estrutura capitalista do país, mas sim de se sentir vivo; um impulso que pode ser comparado a qualquer outro vício socialmente mais aceito.

Ainda dentro da comparação com Crime e Castigo, diferente de Raskólnikov que cai num completo desespero emocional, Michel confessa suas transgressões porque é pego, não existindo a mínima possibilidade de redenção no ambiente onde vive. Contudo, só quando ambos se veem emprisionados, é que encontram o valor das relações humanas.

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O plano final em que o protagonista tenta atingir o contato físico com sua parceira, mesmo com grades entre eles, é a prova viva de um cineasta com a plena consciência de saber construir sua mise-en-scène sem chamar a atenção para si, numa sucedida tentativa de tornar toda a experiência na mais autêntica possível.

Em uma de suas entrevistas, Bresson afirma que prefere que as pessoas sintam o filme no lugar de apenas entendê-lo. E não é essa, em essência, o objetivo de qualquer arte? De nos fazer sentir, não importa qual que seja a emoção?

Fato que (ironicamente ou não) se correlaciona com a própria trajetória do personagem principal.

Nota: ★★★★★

 

 

 

Ficha técnica

pickpocketNome Original: Pickpocket

Ano: 1959

Direção: Robert Bresson

Roteiro: Robert Bresson

Elenco: Martin LaSalle, Marika Green, Pierre Leymarie , Dolly Scal, Pierre Étaix, Jean Pélégri

Fotografia: Léonce-Henri Burel

Montagem: Raymond Lamy

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Jonatas Rueda

Capixaba, formado em Direito e cinéfilo desde pequeno. Ama literatura e apenas vê séries quando acha que vale muito a pena. Além do cinema, também é movido à música, sendo que em suas playlists nunca podem faltar The Beatles, Bob Dylan, Eric Clapton e Led Zeppelin.

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